30/11/2012 às 00h00
Por José Castello | Para o Valor, de Curitiba
Uma palavra conquistou a linha de
frente da literatura contemporânea: “autoficção”. Ela surgiu na
Europa, para designar romances fronteiriços, que vacilam entre a memória e a
fantasia, como os relatos assombrosos do espanhol Enrique Vila-Matas. Vencedor
de quase todos os prêmios literários brasileiros de 2008, “O Filho
Eterno” (Record), romance de Cristovão Tezza, a trouxe, de vez, para o
meio literário brasileiro. Embora narrado na terceira pessoa, o romance de
Tezza se baseia frontalmente na experiência do autor como pai de um rapaz
portador da síndrome de Down. O termo “autoficção” designa exatamente
isso: narrativas que trabalham com recordações verdadeiras, envolvidas, porém,
no manto deformador da invenção.
Primeiro problema: essas narrativas lidam, também e
ao mesmo tempo, com lembranças inventadas. Ou seja: a deformação (da verdade em
mentira e da mentira em verdade) se desenrola nas duas direções. São romances
que manipulam a memória, sim, mas uma memória indigna de confiança, que se
dissolve na sombra da ficção.
Há cerca de um mês, em uma mesa-redonda promovida,
em São Paulo, entre três dos quatro romancistas finalistas do Prêmio Portugal
Telecom 2012 – que tive a honra de mediar -, a palavra mágica, que incendeia
paixões, mas também desconfianças, esteve no centro do debate. A mesa só não
contou com a presença do quarto finalista, o escritor português Valter Hugo
Mãe, autor de “A Máquina de Fazer Espanhóis” (Cosac Naify). Bernardo
Kucinski, autor de “K.” (Expressão Popular), Julián Fuks, de “Procura
do Romance” (Record), e Michel Laub, de “O Diário da Queda”
(Companhia das Letras), porém, não falaram de outra coisa. Seus três livros
foram escritos na longínqua e frágil fronteira que separa memória e ficção.
Seriam, portanto, não só exemplos do novo gênero, mas, na condição de
finalistas de um prestigiado prêmio literário, uma prova concreta de seu
sucesso.
Há pouco tempo, li na internet um breve comentário
de Antonio Xerxenesky – finalista, a propósito, do mesmo prêmio, só que na
categoria de contos e crônicas, com “A Página Assombrada por
Fantasmas” (Rocco) – que me ajuda a pensar a palavra indecifrável.
Refletindo a respeito da existência da “autoficção”, Xerxenesky nos
oferece, em vez de uma resposta, uma pergunta: “Não seria toda autobiografia
também ficcional?”
Eis o problema das fronteiras: pode-se saltar,
sempre, de um lado para outro, como os turistas que, postados sobre a linha do
Equador, brincam de colocar o pé direito no Hemisfério Sul e o esquerdo no
Hemisfério Norte. Ou o contrário. E aqui voltamos ao mesmo problema: é possível
caminhar, sempre, nas duas direções, de modo que ninguém pode afirmar, com
certeza, a direção dominante. Verdade ou mentira? Autobiografia ou ficção? Para
fugir da escolha – ou talvez melhor, para indicar que ela é impossível – surgiu
a palavra, “autoficção”, que fala mais de uma impossibilidade do que
de uma possibilidade, mais de uma ruptura de gêneros do que de um gênero
determinado.
Talvez seja útil retornar ao século XX. Nele, o
escritor francês André Malraux (1901-1976) abre suas célebres
“Antimemórias”, de 1967, com a breve citação de um texto budista.
Está escrito: “O elefante é o mais sábio de todos os animais, o único que
se recorda de suas vidas anteriores; por isso ele permanece tranquilo durante
tanto tempo: ele medita”.
A “autoficção”, ao contrário, parece ser
uma espécie de recordação imaginária de fatos (vidas) realmente existentes, mas
perdidos para sempre nos vãos da lembrança. Já as “Antimemórias” de
Malraux são estranhas memórias em que o escritor fala muito mais dos outros e
quase nada de si mesmo – como se nada houvesse no interior do homem, André,
nada a lembrar, nada a recordar, mas só um vazio. Os elefantes, como diz o
texto budista, talvez até se lembrem de suas vidas passadas, mas disso jamais
saberemos, já que eles não podem falar. Abismos, despenhadeiros, desertos
compõem a paisagem longínqua que separa a memória da imaginação. E é nessa
paisagem inóspita que muitos escritores hoje caminham.
Além de tudo, e Xerxenesky está certo, ninguém pode
garantir que as autobiografias (que seriam, em princípio, o oposto da
“autoficção”) dizem “toda a verdade”. Até porque certamente
elas não fazem isso, já que a ideia de uma verdade completa é só uma abstração.
No debate entre os escritores finalistas, na Livraria da Vila, o escritor
Michel Laub admitiu que partes importantes de sua vida estão presentes, sim, em
“O Diário da Queda”. Mas, para que seu livro não seja visto como um
espelho, ele se apressou a ressaltar: “Só que o que aparece na superfície,
como claramente biográfico, é ficção. Já o que é verdadeiro está escondido, em
regiões mais profundas, quase invisíveis”.
Também Bernardo Kucinski admitiu, sem meias
palavras, que, em “K.”, “só o primeiro e o último capítulo são
verdadeiros”; o resto, mesmo os documentos reproduzidos em aparência
irretocável, é falso. “K.” é, como disse Kucinski, “só uma
parte” da história real de sua irmã, uma desaparecida política que o pai
buscou com um corajoso desespero. Também as histórias de avô, pai e neto, que
entrelaçam no livro de Laub o horror do holocausto com um experiência trágica
da infância, trazem, apenas, pedaços (ou restos) da memória. São, como o
próprio escritor definiu, um jogo com o leitor a respeito da verdade.
A pergunta, porém, retorna: não será todo relato –
“real” ou “ficcional” – um jogo com a ideia da verdade? Um
jogo que se parece muito com a brincadeira “de mostrar e esconder”
que as mães fazem com seus bebês, ora exibindo a face orgulhosa, ora a
ocultando atrás do berço? Parece fundamental, no desenvolvimento dos bebês, a
experiência dessa zona fronteiriça, na qual a verdade oscila. Talvez nada possa
lhes fornecer uma noção mais precisa (ainda que paradoxal) do que seja a
realidade.
Também a “autoficção” se vale da dupla
condição da verdade. Imitando a postura dos repórteres, o autor realiza uma
“apuração interior”. Mas experimente contar para alguém o sonho que
você teve na noite passada, ainda que faça isso logo cedo, no café da manhã, ou
talvez ainda na cama. O sonho “verdadeiro” retornará, mas cheio de
buracos e deformações. Mais grave: para relatá-lo, é necessário preencher a
narrativa com a cola da imaginação.
Disse Laub que “o escritor não escreve o livro
que quer, mas o livro que tem dentro de si”. Nesse sentido, mesmo o mais
realista dos romances do século XIX seria autoficcional. Nesse caso, a verdade
não está no que se relata, mas na “fé” que o escritor coloca no que
relata. Volto a Xerxenesky, quando ele diz que “o que separa a
autobiografia do gênero autoficcional seria a ‘intenção'”. Logo ela,
lembra o contista, cuja morte já foi fartamente decretada pela crítica. Por
coincidência (ou não), Laub, Fuks e Kucinski são, os três, jornalistas de
formação. Só que, em seus livros, em vez de apurar para fora, apuram para
dentro.
“Eu não costuro para fora, costuro para
dentro”, disse, certa vez, Clarice Lispector, que talvez já anunciasse,
assim, e sem saber, seu compromisso com a “autoficção”. Mas não: na
obra de Clarice não aparece, em nenhum momento, a palavra “eu”.
Apesar disso, sua sombra permeia, com força, cada frase. Lembrou Kucinski, a
respeito, que, em vez de ficar com “a frieza dos documentos”, em seu
romance ele preferiu trabalhar com “uma verdade fluida”. Contudo, um
escritor nunca se livra do que é. Dedicado à carreira universitária, Fuks
admite, por exemplo, que, quando escreve ficção, nunca se livra de sua
“linguagem de professor”. Não acredita, porém, na existência de uma
“linguagem do romance”. Ao contrário, disse: “Procurei incluir
tudo em meu livro”. Já o título assinala essa procura.
Fuks, Laub e Kucinski afirmaram, todo o tempo, seu
desinteresse pela verdade objetiva. Em suas falas, podia-se ouvir a voz
distante, mas firme, de Nelson Rodrigues e de sua pregação incansável contra
“os idiotas da objetividade”. Os três romances se encontram, também,
no tema oculto da dor. Holocausto (Laub), ditadura militar (Kucinski), vazio
(Fuks) são suas manifestações. Eles podem ser lidos, assim, como tentativas,
ainda que fracassadas, de uma ortopedia interior. Luta para engessar, grudar,
restaurar, o que se perdeu. No lugar do perdido, cada um deles obtura o vazio
com sua visão particular de mundo. A imaginação tomar o lugar da verdade. Ou,
talvez encontrando uma definição possível para a “autoficção”,
podemos dizer: a verdade e a imaginação expõem, de modo gritante, sua condição
inseparável.
José Castello é jornalista e escritor. Autor, entre
outros, de “Ribamar” (Bertrand Brasil, Prêmio Jabuti de romance) e de
“Vinicius: o Poeta da Paixão” (Companhia das Letras, Jabuti de
ensaio). É colunista do “Prosa & Verso” de “O Globo”,
no qual mantém o blog “A literatura na poltrona” (www.oglobo.com.br/blogs/literatura)
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