Um escritor que não podia escrever
Franz Kafka

Por Tatiana Salem Levy | Para o Valor, do Rio









Se a leitura das mais de 600 páginas do diário de Franz Kafka nos mergulha em dúvidas e contradições, também nos leva a uma certeza: escrever é uma experiência física. Nos cadernos redigidos ao longo de 13 anos, o autor tcheco aborda constantemente a relação entre corpo e escrita. Ao se queixar de dores de cabeça, insônia e costas pesadas, ele ressalta como sua condição física precária dificulta, ou até mesmo impede, seu processo criativo.


Kafka precisa estar saudável. Com dores, não se produz. E, no entanto, lá estão elas, dia após dia, impedindo-o de fazer a única coisa que ele faz: escrever. Vemos em suas anotações a luta incessante contra uma fadiga crônica, noites seguidas de insônia, pesadelos, dores no corpo e, finalmente, contra a tuberculose que acaba lhe tirando a vida em 1924, aos 40 anos de idade. O leitor do diário se depara inúmeras vezes com queixas como esta: “Não posso continuar a escrever”. Contudo, ele não faz outra coisa. Seria a impossibilidade de escrever o que torna a escrita possível?


No seu pequeno livro sobre a experiência literária, a escritora francesa Marguerite Duras afirma o seguinte: “Escrever. Não posso. Ninguém pode. É preciso dizer: não se pode. E se escreve”. Ora, é justamente isso o que nos revela a obra de Kafka, constituída de romances, novelas, contos, uma vasta correspondência e diários. Ele se dedica exclusivamente à literatura, embora o mundo se oponha à sua paixão. Seu pai vê nela um trabalho inútil, além de afirmar sem receio que o filho escreve mal. Para sobreviver, Kafka precisa trabalhar numa companhia de seguros, desperdiçando boa parte do tempo numa atividade que não lhe interessa. Além disso, desespera-se com a ideia de se casar, construir família. Durante o período em que permanece noivo de Felice Bauer, enlouquece com a ideia de nunca mais estar só, mudar seus hábitos, não ter mais a mesma disponibilidade para a literatura. E, por isso, termina optando por não levar adiante o casamento.


Muitas vezes Kafka fala de seu corpo doente e fraco como resultado de sua herança, sobretudo da relação com o pai, Hermann. Em 1919, aos 36 anos, Kafka escreve a famosa “Carta ao Pai”, na qual expõe a conturbada relação dos dois e as consequências físicas dessa relação, uma das fontes de sua hipocondria. Nunca enviada, a carta terminou por se tornar não apenas um documento, mas um texto de imenso valor literário. A certa altura, ao falar da insegurança e da preocupação com doenças reais, ele afirma: “Era natural que até a coisa mais próxima, o próprio corpo, se tornasse incerto para mim; cresci e espichei para cima, mas não sabia o que fazer com isso, o fardo era pesado demais, a coluna ficou encurvada; mal ousava me mover, menos ainda fazer exercícios, e permaneci fraco”. Em seu diário, percebe-se o incômodo desse corpo frágil, que suporta peso tão grande. Ao longo dos anos, ele fala da impossibilidade física de escrever e da necessidade interior de fazê-lo. “Ter tão pouca força física! Mesmo essas poucas palavras são escritas sob a influência da fraqueza”, diz ele. E mais a frente: “Hoje, passei toda a tarde no sofá num estado de cansaço doloroso”.


Suas angústias aparecem no corpo e no texto. O primeiro franze, curva, é pequeno demais para dar conta de tudo. O segundo expande, alarga a vida, vai muito além do seu cotidiano banal, transforma as miudezas e as convenções em potência, o filho acuado num inseto gigante. Um contra o outro, um pelo outro. Escrever é um processo que requer saúde, disposição; doença é interrupção de processo. Diante das queixas de Kafka, uma questão se apresenta: como ele fazia para escrever tanto?


Segundo Gilles Deleuze, o escritor goza de uma “frágil saúde irresistível”. Em outras palavras, ele vê e ouve coisas demasiado grandes, fortes demais, irrespiráveis. O corpo sente e expressa essa experiência. E, por isso, não pode ser propriamente saudável. No entanto, tampouco é propriamente doente. Caso o fosse, não alcançaria a transformar o que vê em literatura. Arrisca Deleuze: “o escritor, enquanto tal, não é doente, mas antes médico, médico de si próprio e do mundo.” Diante do irrespirável, ele busca criar um pouco de ar. Assim, tudo o que atormentava Kafka se transformava em material literário. Em meio a tantas contradições, seu corpo reclamava, mas terminava por se tornar escrita.


A literatura é, então, uma forma de saúde, de tirar o corpo pesado da paralisia, de fazer o sangue circular. Por isso, Kafka escrevia o tempo todo, quando não era ficção, eram cartas e diários. Aliás, as cartas constituem para ele uma maneira de movimentar as relações estagnadas, cheias de silêncio. Tudo aquilo que não conseguia dizer ao vivo senão com o corpo débil, ganhava força quando ele escrevia sua correspondência. Foi assim com o pai, e foi assim com a noiva Felice, que ele conheceu na casa da família Brod em agosto de 1912. Durante cinco anos, ele lhe escreveu cartas posteriormente reunidas num volume de mais de setecentas páginas.


Embora não quisesse casar, acabou se tornando noivo de Felice. Eles se viram raríssimas vezes, mas se escreviam diariamente. Gilles Deleuze define a correspondência do escritor tcheco como um vampirismo epistolar: as cartas lhe traziam sangue, e o sangue dava-lhe a força de criar. É da correspondência que ele tira a energia física necessária para escrever. Ele precisa desse refúgio, desse diálogo, alguém com quem falar sobre o que escreve. Inclusive, agradece a Felice por ter encontrado nela a salvação “deste monstruoso mundo que apenas ouso enfrentar em noites dedicadas ao ato de escrever”. Kafka exige que a noiva lhe escreva duas vezes por dia, pois precisa dela para criar o pacto. Felice não é tanto uma mulher, mas o espectro a quem ele se dirige. Kafka substitui o amor pela carta de amor, o contrato conjugal tão temido por um pacto diabólico.


O casamento seria mais um elemento para distanciá-lo da literatura. Já eram tantos os empecilhos – o corpo fraco, o trabalho, a família, a língua (judeu tcheco, falante de ídiche, escrevia em alemão) – que ele preferiu não acrescentar outro, e transformou o noivado numa atividade epistolar.


Como se pode perceber, a vida que rodeava Kafka só o afastava de seu ofício de escritor, mas ele foi hábil o suficiente para fazer dessa mesma vida material para a literatura. Dessa forma, o que se delineava como impossibilidade de escrita acabou fundando a própria escrita. Assim como o campeão de natação que não sabia nadar, ou Josefina, a rata cantora que comovia o povo dos camundongos com uma voz tão fraca que mais parecia um assobio, Kafka foi um grande escritor que não podia escrever.


Tatiana Salem Levy é escritora e doutora em letras. Publicou os romances “A Chave de Casa” e “Dois Rios” (Record)


Fonte: Valor Econômico/Cultura