‘O pequeno príncipe’ ganha versão em tupi

Uma das obras mais consagradas da literatura infantojuvenil mundial, o livro O pequeno príncipe, escrito em francês por Antoine de Saint-Exupéry, em 1943, é também uma das mais traduzidas: ganhou versões em pelo menos 240 idiomas. Há cerca de um mês, ficou pronta mais uma, bastante inusitada, em nheengatu, língua derivada do tupi que até hoje é falada na Amazônia.

O desafio de traduzir uma narrativa que tem como base a cultura europeia para o universo indígena foi enfrentado pelo agora mestre em Letras, Rodrigo Trevisan.

Depois de cursar disciplinas do idioma tupi, língua predominante na costa brasileira no ano de 1500 e da qual se derivou o nheengatu, ele traduziu o texto durante sua pesquisa de mestrado, com orientação do professor Eduardo de Almeida Navarro, do Departamento de Línguas Modernas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.

A iniciativa de tradução de uma obra literária para essa língua, ainda usada por cerca de 6 mil falantes, tem como principal objetivo revitalizá-la, pois sua ocorrência se dá numa região restrita. “Além disso, por ser historicamente vinculada à oralidade, há carência de registros escritos em nheengatu”, explica.

A escolha da obra O pequeno príncipe, de acordo com o tradutor, procurou atender aos dois públicos principais a que se destina a tradução: as escolas de São Gabriel da Cachoeira e os alunos das disciplinas Tupi III e Tupi IV oferecidas na USP, nas quais o nheengatu é estudado.

“A tradução de uma obra infanto-juvenil parece adequar-se bem aos dois, tanto aos alunos em idade escolar quanto aos universitários, incipientes no idioma. Em relação aos estudantes do ensino básico, a escolha do enredo do pequeno príncipe foi motivada também pelos valores que o livro ressalta, como a sabedoria e a imaginação fértil das crianças e a amizade, elementos incentivados no ambiente escolar”, frisa o pesquisador.

Chefinho – A opção do pesquisador pela obra escrita em francês também decorreu do fato de ele ter domínio desse idioma e poder fazer a tradução diretamente do texto original. Realizada em três anos, ela teve como base a confrontação de textos antigos de nheengatu e a forma como a língua é falada atualmente nas comunidades indígenas. Isso exigiu do pesquisador três idas à região.

“Permaneci cerca de um mês em cada vez que fui. Tive uma experiência marcante, pois é um local muito bonito e fiquei em contato com os falantes do nheengatu, que contam histórias com riqueza de detalhes sobre seus pais e avós”, lembra. Trevisan considera essa vivência fundamental para que a realidade regional pudesse ser incorporada à tradução, tendo auxiliado na solução das maiores dificuldades do trabalho, a começar pela escolha de um termo apropriado para o título da obra.

“Não há um correspondente no idioma indígena para a palavra prince (príncipe). Por isso, tive de encontrar primeiro uma figura que se assemelhasse culturalmente ao personagem para achar a tradução, que ganhou a forma de muruxawamiri – que quer dizer chefinho em nheengatu”, esclarece.

Dando um exemplo de seu método, o tradutor acrescenta que, embora muruxawamiri seja uma expressão antiga e usada mais comumente pelas gerações passadas, optou por ela para relacionar uma forma em desuso à nomeação de uma personagem misteriosa, da qual pouco se conhece e que aparece ao narrador no deserto, quase como uma miragem, longe de qualquer região habitada.

Adaptação – Outros desafios relacionados às diferenças culturais e linguísticas foram resolvidos por meio do contato próximo, no qual recebeu ajuda dos falantes, principalmente da professora local Celina Menezes da Cruz. Em algumas situações, o tradutor decidiu adaptar a referência a alguns animais ou plantas da realidade amazônica. Tigre, por exemplo, foi substituído por yawareté-pinima (onça-pintada). O nome raposa, que é traduzido em muitas narrativas em nheengatu pela palavra mikura, cujo significado é “gambá”, Trevisan preferiu, pelas características físicas, substituir por yawara kaapura (cachorro-do-mato). ”Trata-se de uma designação genérica em nheengatu, podendo se referir a diferentes tipos de cães não domesticados”, afirma.

Publicação – Por outro lado, palavras como asteroide e planeta, que aparecem muito no livro e não possuem tradução específica para o nheengatu, foram adaptadas tendo em vista o contexto em que são utilizadas no texto. “Julguei ser possível traduzir “asteroide” por yasitatá (estrela), porque o próprio principezinho referiu-se ao seu asteroide, o asteroide B 612, como sendo uma estrela”, esclarece.

Com a dissertação defendida e aprovada, Trevisan e seu orientador procuram, agora, alternativa para a publicação do trabalho para permitir que o livro chegue gratuitamente
aos dois públicos aos quais se destina.

O tradutor explica que a ideia é utilizar na edição as ilustrações originais, aquarelas feitas pelo próprio Saint-Exupéry. “Dessa forma, podemos aproximar desse novo público a concepção imagética do autor, sem ter problemas de direitos autorais, pois a obra está em domínio público”, finaliza o pesquisador.

DOE, Executivo I, 06/05/2017, p. IV