30 de novembro de 2012 | 19h 08
ANTONIO GONÇALVES FILHO
A crescente onda de traduções dos livros de Clarice
Lispector (1920-1977) nos EUA, tema da matéria de capa da Bookforum deste mês,
vem acompanhada no Brasil de novas abordagens da obra da escritora. É o que
atestam dois lançamentos simultâneos: Extratextos 1 – reunião de 12 contos
inspirados por seus personagens e encomendados a um grupo de ficcionistas – e
No Limiar do Silêncio e da Letra, ensaio de Maria Lucia Homem sobre a questão
da autoria em Clarice Lispector com base em três livros dela: Água Viva (1973),
A Hora da Estrela (1977) e Um Sopro de Vida (1978). No primeiro dos lançamentos,
Extratextos 1, estão reunidos escritores brasileiros e estrangeiros, entre eles
o crítico literário Silviano Santiago, colunista do Sabático (leia trecho de
seu conto no link acima). Essa experiência de reescritura é analisada pela
ensaísta Olga de Sá em texto publicado abaixo, enquanto o processo construtivo
da literatura clariciana e seu diálogo com o leitor – convocado a dividir a
autoria dos textos – é o tema do artigo de Alcides Villaça, da USP, que está
nos links acima.
Ao confundir as funções de autor, personagem e
leitor em alguns de seus livros, Clarice fez a este último um convite ao
abandono da razão. Para a crítica literária Rachel Kushner, que assina o ensaio
da Bookforum, isso explicaria a empatia dos americanos com seus textos
carregados de filosofia – que, contrariando Wittgenstein, ousam dizer aquilo que
é impossível ser dito. Ela suspeita que a razão de Clarice ter inspirado
verdadeira devoção entre seus leitores resida na segurança de terem um guia –
sincero, honesto, ainda que inseguro – à frente do texto. “Os leitores
sentem que ela está falando com eles sobre a mais básica e ao mesmo tempo mais
complexa experiência humana: a estranheza diante do que significa estar
vivo.”
A psicanalista Maria Lucia Homem, que dedicou cinco
anos à elaboração de No Limiar do Silêncio e da Letra, diz a esse respeito que
Clarice “tenta construir outro estatuto para a linguagem verbal”,
aproximando a escrita de uma “névoa”, de uma “fotografia
muda”, além de estabelecer diálogos intertextuais com outros autores
(Shakespeare, Dostoievski) para traduzir a tragédia existencial do homem,
“submetido às mazelas do destino e das condições que o cercam”.
Autor, leitor e texto, segundo a psicanalista, formam uma tríade inseparável.
Clarice, observa ela, tematiza o tema da autoria como representante da
modernidade literária, em que questiona a posição do narrador e ultrapassa os
limites formais, afirmando que sua linhagem é a de Proust, James Joyce e
Virginia Woolf.
A autora do artigo da Bookforum vai além,
comparando-a a Kafka, uma vez que ambos elegem um simples inseto para conferir
ao homem o ingresso numa dimensão metafísica, surreal. Graças à barata de A
Paixão Segundo G.H. (1964), a burguesa do livro experimenta, comenta ela, o
gosto da transubstanciação católica. É a sua hóstia em seu incipiente processo
de transformação espiritual, conclui Kushner. Outra referência citada por ela é
Ingeborg Bachmann (1926-1973), poeta austríaca que morreu em consequência de
queimaduras provocadas por um incêndio em seu quarto, causado por um cigarro
(Clarice passou exatamente pelo mesmo drama, mas escapou).
No entanto, Kushner discorda que a modernidade de
Clarice deva algo ao “stream-of-consciousness” (fluxo de consciência)
de Joyce ou Virginia. Em termos de correntes literárias vanguardistas e de suas
relações com os contemporâneos, ela não seria, acredita a crítica,
“conscientemente experimental”. Se tanto, Kushner vê maior afinidade
com os artistas neoconcretos – Lygia Clark, Hélio Oiticica, Lygia Pape -,
identificando em Água Viva uma tentativa de traduzir em palavras a ordem
geométrica dominante nas obras neoconcretas. O que não pode ser dito talvez
possa, afinal, ser mostrado, conforme sua lógica. A ideia que Clarice tinha de
Natal, argumenta Kushner, era a de uma árvore decorada com formas geométricas
irregulares em preto e cinza, como num metaesquesma de Oiticica. Foi a árvore
que ela montou em Chevy Chase, Maryland, em 1950, ainda casada com o diplomata
Maury Gurgel Valente.
Por aquela época, Clarice convivia com seus amigos
mineiros – Fernando Sabino, Lúcio Cardoso, Otto Lara Resende e Paulo Mendes Campos
-, convivência essa que a associava automaticamente ao gosto dos mineiros por
discussões em torno das tradições religiosas (especialmente a católica). Ela
mesma era leitora de Imitação de Cristo, obra devocional do padre alemão Tomás
de Kempis, publicada no século 15, cita o também mineiro Silviano Santiago.
Quase ninguém, na época, lembrava de Clarice como uma escritora judia, nascida
na Ucrânia. Santiago observa que ela, acima de qualquer classificação, foi
sucessivamente apropriada pelos católicos nos anos 1950, depois por
existencialistas nos anos 1960, pelas feministas francesas nos anos 1970
(notadamente a argelina Hélène Cixous) e, agora, pela intelectualidade
americana, que a quer uma escritora encaixada na tradição dos grandes
escritores judeus, como Saul Bellow e Philip Roth. Contribui para isso a
biografia (Clarice), de Benjamin Moser, em que o americano sugere ser o
judaísmo um tema “disfarçado” em seus escritos. Clarice, como Moser,
não era religiosa. Ele garantiu mais de uma vez que a presença judaica não
contribuiu para seu interesse inicial pela autora.
A psicanalista Maria Lucia Homem ressalta, com
razão, que a associação de Clarice com a tradição judaica é anterior a Moser. A
escritora tentou “dar forma ao incomensurável”, diz. O silêncio, o
impronunciável, aquilo que não pode ser escrito, toda essa discussão filosófica
judaica, de acordo com a autora, é retomada por Clarice numa perspectiva
moderna, cuja chave psicanalítica seria a “subjetividade pautada pelo
inconsciente”. Clarice, conclui a psicanalista, buscava em sua literatura
algo além do texto, como já observara Benedito Nunes (1929-2011), pioneiro no
campo ensaístico sobre a escritora. Em O Drama da Linguagem – Uma Leitura de
Clarice Lispector (1989), o filósofo paraense faz uma análise fenomenológica e
existencialista de sua obra a partir das leituras de Heidegger, Kierkegaard e
Sartre (em particular, do conceito de náusea do filósofo francês, angústia que
arrebata o corpo).
Hoje, é a filosofia de Clarice que se exporta.
Entre os autores selecionados por Luis Maffei e Mayara R. Guimarães no livro
Extratextos 1 para “reescrever” Clarice Lispector estão três
portugueses (Pedro Eiras, Maria Teresa Horta, Hélia Correia), uma uruguaia
(Vera Giaconi) e uma cabo-verdiana (Vera Duarte). O angolano Pepetela (O
Planalto e a Estepe) foi consultado, disse que escreveria, mas acabou
desistindo. “É engraçado como os ficcionistas de outros países adotam
Clarice como uma escritora deles, como se houvesse uma linguagem neutra da qual
não se soubesse a origem”, analisa Maffei, também um dos autores da
coletânea, que escolheu como personagem a senhora Jorge B. Xavier, de A Procura
de Uma Dignidade, conto de Onde Estivestes de Noite (1974). Em sua versão, a
senhora do título revisita o Maracanã em obras, imaginando entrar num show de
Roberto Carlos nos anos 1970.
Maffei traduziu o conto da uruguaia Vera Giaconi,
que vive em Buenos Aires, onde a obra de Clarice cresce. Nos EUA, as novas
traduções de seus livros, avalia a crítica da Bookforum, são mais fiéis em
preservar sua “rudeza intencional” e “idiossincrasias”.
Cinco dos nove livros traduzidos recentemente tiveram a supervisão de Benjamin
Moser, frisa Rachel Kushner – e todas as traduções são menos herméticas que as
anteriores, garante ela, cujo conto favorito de Clarice é um sobre a
“luxúria” de tomar Ovomaltine, que lhe provocava náusea. Mas Clarice
suspeitava não ser culpa da bebida. “Sou eu que não sou boa”,
concluiu.
EXTRATEXTOS 1 – CLARICE LISPECTOR, PERSONAGENS
REESCRITOS
Org.: Luis Maffei e Mayara R. Guimarães
Editora: Oficina Raquel
(130 págs., R$ 39,90)
Fonte:
Estadão.com.br/Cultura