A ideia de verdade multiplicada

Tatiana Salem Levy | Para o Valor, do Rio

No romance “De Verdade”, do húngaro Sándor Márai, o protagonista Péter anuncia: “Escute. Quero contar a verdade”. Eis o desejo mais genuíno de todos os que contam uma história: que o outro escute e acredite no que será narrado. Ainda que o conceito de verdade tenha sido questionado ao longo do século XX e levado quase à extinção nas duas primeiras décadas do nosso século, parece que o impulso da verdade continua a ser o grande motor de quem conta e de quem ouve. Ninguém quer saber de uma história que se diz mentirosa desde o princípio.

O que Márai faz nesse romance é justamente um jogo de pontos de vista, relativizando assim a ideia de verdade ou, em outras palavras, multiplicando-a. Não é que a verdade não exista, ao contrário, mas existe em variadas versões. O que mais importa talvez não seja defini-la, muito menos aprisioná-la, mas se aproximar dela, tocá-la. E quando o tema da narrativa é o amor essa aproximação se torna ainda mais necessária, e os dois conceitos se misturam. Afinal, existe amor de verdade? Mulher de verdade, homem de verdade? O que é o amor?

O livro se inicia com o relato de Ilonka, a primeira mulher de Péter. Numa confeitaria de Budapeste, ao avistar o ex-marido, ela se põe a falar dele a uma amiga que não via havia muito tempo. Conta como percebeu que Péter não estava inteiro ao seu lado. Por mais que se produzisse, lesse, fosse educada, inteligente, boa amante, algo parecia faltar constantemente, como se ela não fosse a mulher ideal, como se não fosse suficiente para ele. Mas ele, sim, era o homem que ela queria, e por isso Ilonka corre atrás de seu segredo.

Depois da morte do filho – o último elo legítimo entre os dois -, ela adoece e precisa ser internada. Mais do que a dor da perda do menino, o que a deixa aflita é a antecipação do fim de seu casamento. Sem o filho, o que poderia mantê-los unidos? Ainda no hospital, numa conversa com a sogra, Ilonka descobre que há, de fato, outra mulher, e ao interrogar se ela existe em algum lugar, se vive em algum lugar, escuta a seguinte resposta: “A de verdade está sempre viva em algum lugar”. Enunciado ao mesmo tempo preciso e vago, que se torna a inspiração de Ilonka nos meses seguintes. Ela está decidida a descobrir quem é e onde mora essa mulher.

Certo dia, encontra na carteira de couro de crocodilo do marido – a mesma que ele usa anos depois, na confeitaria – uma fita lilás, e a mulher de verdade se torna real pela primeira vez. Muito mais do que uma simples fita, o que lhe surge aos olhos é a concretude de uma desconhecida que conseguiu aquilo de que ela, Ilonka, foi incapaz: o amor de Péter.

Numa conversa com Lázár, o escritor de hábitos esquisitos, Ilonka se depara com uma sentença intrigante: “Se a encontrar, vai se surpreender. Vai se surpreender de ver como a realidade é mais simples do que você imagina, como é mais banal, comum e, ao mesmo tempo, distorcida e perigosa”. Depois de descobrir quem e como ela é, de se surpreender com a sua condição social, mas também com a sua força, de lutar pelo marido com o fantasma ao lado, de esperar, de perder e ver os dois se casando, ela enfim chega à sua conclusão: “E de súbito compreendi que não existe mulher de verdade. Nem na terra nem no céu. (…) Existem apenas pessoas, e em todas há um grão de verdadeira, e nenhuma delas tem o que do outro nós esperamos e desejamos”.

O que existe não é, portanto, a pessoa de verdade, mas o encontro, que pode ou não acontecer – e, quando ocorre, é sempre da ordem do inexplicável. O que faz alguém amar esta e não aquela pessoa? Desse mistério a literatura se ocupa há muito, e porque não há uma definição possível o homem inventa histórias. São os personagens e as tramas que nos aproximam da magia do encontro, desse inefável que não conseguimos explicar, mas reconhecemos quando dele chegamos perto. Como diz Ilonka, “o mais importante não se pode dizer a ninguém. Todos aprendem sozinhos”.

O que há de indefinível reside justamente na figura do outro. Para o filósofo Emmanuel Lévinas, o outro é aquele que nos ultrapassa, o estranhamente misterioso, o que não se pode conhecer. Em outras palavras, trata-se de um ele que não é nunca um eu, que permanece inacessível. O outro raramente é do jeito que o imaginamos, e essa é uma das ideias que Márai evidencia no romance.

Temos primeiro a visão de Ilonka sobre Péter e, quando já construímos um personagem na nossa cabeça, é Péter quem ganha voz, e tudo muda. O Péter que fala não é o mesmo Péter sobre quem Ilonka falou. Esse mesmo jogo continua ao longo do livro. Péter fala a um amigo sobre Ilonka e Judit, a tal mulher de verdade, se é que ela existe. Em seguida, Judit fala, muitos anos depois, sobre Péter a um amante baterista que, por sua vez, fala de Judit no relato final. A cada capítulo, o leitor tem que reconstruir o personagem e se recolocar a pergunta: afinal, existiu amor de verdade?

Ainda que ele exista – e Márai não descarta essa possibilidade – certamente não tem a ver com a eternidade do sentimento. Príncipes encantados e finais felizes não combinam com as vidas que nos são contadas. Até porque quem narra só narra depois que o amor acabou ou que os amantes já não estão juntos. A história é sempre passada, uma lembrança. E o amor tem mais a ver com um encontro do que com a construção de um ideal. É Péter quem se pergunta: “Acontece de alguém entrar um dia num quarto e saber: ah, é ela!… a mulher de verdade, como nos romances?… Não sei a resposta. Apenas fecho os olhos e lembro. Sim, naquele instante alguma coisa aconteceu. Uma energia?… Uma irradiação?… Uma comunicação secreta?… São apenas palavras”.

E as palavras verdadeiras, como diz a própria Ilonka, só chegam mais tarde, depois dos acontecimentos. Por isso, o que surge para o leitor é o que restou de um amor. E de um amor pode restar um rosto envelhecido, uma leve indiferença, um remorso ou o próprio amor. Em quem acreditar: em Judit numa cama de hotel em Roma a relatar, com tom blasé, seu passado com Péter, ou na lamuriosa Ilonka, que no fim de sua narrativa anuncia: “Na realidade, acredito que tudo passe, a não ser o amor”? Nas palavras de Péter, que a certa altura afirma ter visto o amor extinguir, ou em sua figura bêbada e descuidada que aparece num bar de San Diego?

Ou será que, ao contrário, devemos acreditar em todos e nas palavras que se contradizem? Amor e verdade são dois conceitos (expressões? Sentimentos?) que se ramificam, impossível aprisioná-los numa única definição. Ninguém sabe explicar o que é o amor, o que é a verdade, reduzi-los a “apenas palavras”, e mesmo assim todos nós buscamos tanto um quanto o outro. No fim, o que importa é sempre a busca – e o encontro repentino, inesperado. Embora a ideia de amor romântico vá se desfazendo ao longo da narrativa, o amor permanece como o grande mote. Por mais que continuemos sem saber explicar o que significam amor e verdade, temos a certeza de que Márai nos levou até eles. E, por isso, podemos ficar com o clichê enunciado por Lázar, o escritor que parece saber sempre mais do que os outros: “Tudo é possível. É exatamente no amor que tudo é possível.”

Tatiana Salem Levy é escritora e doutora em letras. Publicou os romances “A Chave de Casa” e “Dois Rios” (Record)

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