A saga secular do homem e das coisas de que precisa ou deseja

Por Cláudia Barcellos | Para o Valor, de São Paulo





Assim como a história já foi estudada do ponto de vista de costumes da vida privada, o leitor que tem interesse em conhecer outros aspectos além das conquistas e anexações de territórios, guerras e batalhas que compõem a trajetória das civilizações tem à disposição o enfoque do consumo e do abastecimento para avaliar como as sociedades foram formadas ao longo dos séculos. A integração entre Ocidente e Oriente, que empurrou milhares de homens ao mar numa aventura que poderia custar-lhes a vida, deu-se pela busca de superação de deficiências de consumo da Europa em crise. A garantia de subsistência das populações de vilas foi o motivo propulsor que os lançou aos oceanos Atlântico, Índico e Pacífico. E, claro, à chegada ao Brasil.


O livro recém-lançado “Consumo e Abastecimento na História”, organizado pelas historiadoras Denise Aparecida Soares de Moura, Margarida Maria de Carvalho e Maria-Aparecida Lopes aborda, em três partes e 18 artigos, a saga do homem e das coisas de que precisa ou deseja para viver. Como afirmam as organizadoras, é por meio dos objetos de consumo que “é possível identificar mudanças ou persistências de atitudes individuais ou coletivas e a cultura de uma civilização”.


Assim, a primeira parte é toda dedicada ao abastecimento militar e ao consumo de gêneros alimentícios, de como influenciaram a Roma Antiga e movimentaram toda a Idade Média. Já na segunda parte, os estudiosos explicam como os mantimentos movimentaram as redes de comércio na era das grandes navegações e da descoberta do “novo mundo”. Por fim, a terceira parte trata dos bens culturais, artes, letras e viagens.


As autoras ressaltam na introdução que os objetos e produtos integram a “cultura material das civilizações de todos os tempos e estão inseridos numa cadeia de produção, circulação e consumo”. Os significados dados à produção e ao consumo modificam-se continuamente. E entra em cena, em meio a ambos, a esfera da circulação, como Marx se refere às trocas. A ideia mesma do advento do sistema capitalista está relacionada a esses três pontos.


“O capitalismo comercial, da economia de mercado e do fenômeno da urbanização apenas intensificou e imprimiu nova lógica ao consumo e circulação dos objetos e produtos”, explicam as historiadoras.


Europa e Estados Unidos têm tradição nos estudos de consumo e abastecimento. Mas no Brasil, segundo Maria-Aparecida, professora da California State University, o viés de olhar a história sob esse ângulo ainda é recente: “Apesar da existência de pesquisas sobre o tema, ainda necessitamos aprofundar nosso conhecimento sobre padrões de vida, especialmente nos séculos XIX e XX. Sabemos pouco sobre as redes de abastecimento alimentar, sobre os níveis de vida e o poder de compra dos trabalhadores urbanos e rurais”.


O professor Lélio Luiz de Oliveira, da Universidade de São Paulo, assina um interessante artigo no livro, “Os portugueses e os descobrimentos: um povo no limbo”. Nele, traça o paradoxo existente entre a base da vida rural no pequeno país europeu e o frisson existente em Lisboa, centro dinâmico e berço das grandes navegações que marcariam a expansão ultramarina.


“No tempo dos descobrimentos, o certo é que Lisboa, ao transformar-se em um importante entreposto comercial, passou a ter a função de intermediar as transações econômicas com o interior do reino e com outros portos distantes. Consolidou-se como a cabeça do reino, que tinha que pensar nos negócios de além-mar sem se esquecer do abastecimento interno da cidade. O cotidiano econômico foi aturdido pelo aumento das necessidades”, diz Oliveira.


Para dar uma imagem mais vívida da essencialidade do consumo na drástica mudança da cidade de Lisboa, ele conta que a monotonia das ruas passa a ter elementos novos, os ambulantes, em sua “jornada ofertando o de que comer e de beber”.


Todo o novo cenário urbano era marcado pela venda de “antigos produtos impregnados pelos sabores tradicionais, bem como os produtos exóticos oriundos de além-mar.” O “pequeno reino peninsular” tem o exponencial aumento de quase 40% na população entre a virada dos séculos XV e XVI até cerca de 1530 – quando conta com cerca de 1,4 milhão de habitantes.


Já a pesquisadora Avanete Pereira Souza, da Universidade Estadual do Oeste da Bahia, aborda os circuitos internos de produção, comercialização e consumo na América Portuguesa, tomando como exemplo e centro de seu estudo a capitania da Bahia no século XVIII. Ela também se vale de expressão semelhante à de Oliveira, ao afirmar que, como “cabeça de Estado”, Salvador tinha no fim do século XVIII cerca de 20 mil habitantes, enquanto o Rio tinha 12 mil. A cidade vê a população dobrar entre 1706 e 1759, quando registra 40 mil pessoas. A localização estratégica da Baía de Todos os Santos e o intenso comércio interno e externo praticados ali são os responsáveis pelo salto populacional e desenvolvimento econômico alavancados.


“Salvador acabou por tornar-se imprescindível ao comércio triangular Europa-África-Brasil, assim como ponto de articulação e destino para uma rede atlântica de comércio que não passava necessariamente pela Europa e incluía Angola, São Tomé, Príncipe, Cabo Verde, Açores e Madeira”, relata Avanete. Mais um exemplo de como o eixo consumo-abastecimento mudaria para sempre a vida na primeira capital brasileira. E de como a leitura de “Consumo e Abastecimento na História” leva o leitor a uma viagem transformadora do comum em extraordinário.


“Consumo e Abastecimento na História”


Denise Aparecida Soares de Moura, Margarida Maria de Carvalho e Maria-Aparecida Lopes (orgs.) Editora Alameda, 452 págs., R$ 68,00


Fonte: Valor Econômico/Cultura