Entrar nas histórias de Mia Couto costuma ser uma experiência muito próxima da que se tem com um livro de poesia. O território do escritor moçambicano parece delimitado, de um lado, pelas forças telúricas que comandam a psique africana. Também se abre a uma espécie de língua nova que é o português, mas um português tocado e carregado de cabeça para baixo pelo jeito de falar das ruas do país.
A literatura de Couto, no entanto, tem os pés bem calcados no chão – e o chão de Moçambique conheceu um banho de sangue nas últimas décadas, graças a duas guerras combinadas em uma: a luta pela libertação da matriz portuguesa e a guerra civil de 16 anos que veio em seguida. De tudo isso restou um país em permanente construção, em que a língua oficial, o português, é um chapéu que abriga inúmeros e multicoloridos dialetos.
O português é uma língua que também está sendo construída, e neste sentido, a literatura de escritores africanos como Mia Couto tem um papel catalisador. “Moçambique é uma nação composta por um mosaico de culturas e línguas e a maior parte dos moçambicanos está ganhando agora o primeiro contato com a língua oficial do país, o português. Isso implica um convívio de diferença, de lógicas múltiplas que faz enriquecer o idioma que atua como língua de unidade nacional”, diz Couto em entrevista ao Valor.
O livro de contos “Histórias Abensonhadas”, recém-lançado no Brasil, foi escrito em 1994 no calor do fim da luta. “Tínhamos acabado de sair de uma longa guerra civil que fez 1 milhão de mortos. Os moçambicanos viviam uma espécie de segundo parto, tudo na altura era possível”, conta ele.
“De novo, uma dimensão épica tomou conta da nossa vida e sonhávamos sem limite com um cotidiano isento de conflito e dificuldade. Os contos refletem essa ambiência particular, essa janela de tempo único.”
É do sonho de uma nação que trata o livro, mas do ponto de vista das pequenas pessoas, não o dos heróis e dos guerreiros. Para se entrar no território de Couto é preciso deixar de lado as noções corriqueiras, sempre mais velozes e distraídas, que nos levam aos livros. Os contos do escritor pertencem ao terreno dos sonhos, e usam a poesia como moeda corrente.
No caso, a linguagem poética se radicaliza no uso de palavras e expressões inventadas, na linha do “abensonhadas” do título. É como assistir ao nascimento de uma nação diretamente nas ruas, com os ouvidos atentos a uma forma peculiar de expressão que reúne os erros e os acertos com os quais contribuíram as diversas línguas faladas em Moçambique. O português de Couto vai além.
Ele é único em sua expressividade poética, mas também atravessa para o lado do realismo fantástico sem medo de parecer batido. Gabriel García Márquez e Guimarães Rosa são escritores de forma inventiva e imaginação fértil que têm a muito ver com este livro.
“Esses e outros autores foram, para mim, um estímulo e uma revelação sobre as capacidades infinitas de uma língua que se nega a ser apenas veículo funcional de comunicação. Mais do que tudo, porém, foi a própria vivência de uma nação que anda à procura de uma língua própria que me influenciou”, diz Couto.
O interessante da coisa toda é essa espécie de tábula rasa em que se converteu uma literatura de um país que ainda está nascendo. A ideia, portanto, é deixar de lado o que conhecemos em termos de tradição literária e experiências passadas nos livros e se abrir para uma aventura nova, misteriosa e “mágica” (no sentido da magia do continente africano, esse desconhecido).
Só então poderemos compreender e deixar fluir passagens como a seguinte, do conto “Pranto de Coqueiro”: “Pois de dentro do fruto não jorrou a habitual água-doce mas sangue. Exatamesmo: sangue, certificado e indiscutível sangue. Mas não foi o único pasmo do assunto. Do fruto brotou ainda humana voz em choros e lamentos”. Pode parecer algo já lido há mais de 30 anos, no tempo do realismo mágico de García Márquez. Mas tudo é novo e possível num país que parece viver uma ficção permanente, em que a poesia se constrói no bate-papo das ruas.
“Desde menino, a poesia é o modo como me leio a mim mesmo. Sou um poeta que escreve em prosa. E em verso também”, diz Couto. “E os poetas brasileiros marcaram-me muito. Primeiro, aqueles com maior projeção fora do Brasil: Drummond, João Cabral, Manoel de Barros. Mas depois fui descobrindo Hilda Hilst, Adélia Prado e outros cuja leitura e releitura me fazem ser mais escritor.” É preciso mergulhar com liberdade e tempo nas histórias poéticas do novo país imaginado por Mia Couto.
Mia Couto. Editora: Companhia das Letras (160 págs., R$ 35).
Fonte: Valor Econômico