A batida sincopada da bossa nova, as ousadias do cinema igualmente novo ou as formas despojadas da arquitetura são “revoluções culturais” sempre lembradas quando se fala de meados do século XX no Brasil. O que pouco se menciona é como tudo isso repercutiu dentro da casa das pessoas. O movimento moderno, contudo, propiciou o surgimento de preciosidades no mobiliário brasileiro que só muito recentemente começam a ser reconhecidas fora do circuito dos especialistas.
Uma contribuição relevante para a divulgação dessa produção surge com o livro “Móvel Moderno Brasileiro”, recém-lançado pela FGV Projetos e pela Aeroplano Editora. Em caprichada edição de 300 páginas, a publicação apresenta os principais nomes atuantes no design de móveis no Brasil entre as décadas de 1920 e 1960.
O substrato do que se vê ali é o desejo de dotar os interiores das casas de elementos coerentes com a limpeza das formas da arquitetura moderna e adaptados às condições de vida no Brasil. Até então, as pessoas ricas ou mesmo da classe média pareciam viver em outro tempo e lugar. Nos trópicos, usavam estofados revestidos de brocados e veludos que repetiam os estilos do passado. O “chique” era identificado com o gosto parisiense, daí a profusão de “todos os luíses”, como comentava jocosamente o designer Joaquim Tenreiro ao se referir à predominância de móveis nos estilos Luís XV, Luís XVI etc. nas casas da elite carioca.
Marceneiro de origem portuguesa, Tenreiro passou a ser chamado pelo arquiteto Oscar Niemeyer para projetar os móveis das casas e edifícios que assinava desde o início de sua atuação, nos anos 1940, e se tornou figura seminal na gestação de peças sintonizadas com a realidade brasileira. Elas têm formas simples, livres de ornamentos, e usam com sabedoria e leveza os materiais locais, tais como a madeira, o couro e a palhinha.
O livro apresenta sua produção em destaque, mas começa antes, nos anos 1920, quando Gregori Warchavchik, autor do manifesto pela arquitetura moderna, projeta suas primeiras residências e objetos. Vários dos nomes abordados são de arquitetos, tais como Lúcio Costa, Oscar Niemeyer e Paulo Mendes da Rocha, que, embora tenham atuado apenas esporadicamente no design, exerceram uma contribuição relevante e consistente.
Outros arquitetos tornaram o design de móveis mais presente em sua trajetória, constituindo núcleos de produção. Lina Bo Bardi instituiu o Studio de Arte Palma, de curta duração, mas alta fertilidade. Jorge Zalszupin criou a L’Atelier, que se destacou no mercado de móveis de escritório. Vários arquitetos paulistanos se juntaram no ateliê Branco & Preto, onde puderam praticar os princípios racionalistas que advogavam. Jean Gillon também se dedicou à produção, enquanto Zanine Caldas fundou a fábrica de móveis Z.
Trafegando entre a arquitetura e as artes visuais, inclusive a fotografia, Geraldo de Barros criou a cooperativa Unilabor e depois abriu uma empresa importante, a Hobjeto. Flávio de Carvalho, multimídia por excelência, engenheiro de formação e artista, projetava todos os detalhes dos edifícios da sua prancheta. A proximidade com as artes está presente também em outros nomes examinados na publicação, como Abraham Palatnik.
O espectro de profissionais se completa com aqueles nomes que se dedicaram predominantemente ao design de móveis, tais como Michel Arnoult, que dedicou a vida a perseguir a utopia dos móveis baratos para a classe média, e Sergio Rodrigues, que começou nos anos 1950 e continua na ativa, surpreendendo sempre com seus novos projetos – hoje é o nome mais significativo do design de mobiliário no Brasil, ao lado dos irmãos Campana.
Durante o período analisado pelo livro, um grande vetor para o florescimento da indústria moveleira foi a construção de Brasília. Encomendas volumosas feitas pelo governo povoaram os palácios e os prédios administrativos de móveis que procuravam expressar a cultura brasileira e responder às exigências de funcionalidade e conforto. Quase todos utilizavam o jacarandá-da-bahia (“Dalbergia nigra”), madeira extremamente durável, que não perde em resistência mesmo quando empregada em estruturas delgadas, como os característicos “pés de palito”.
Nas décadas de 1970 e 1980 – os anos de chumbo -, a produção de móveis modernos e o interesse por eles sofreram uma retração no país. Nas empresas predominavam as cópias malfeitas dos produtos italianos. Nos anos 1990, na esteira do “cocooning” – algo como a volta ao casulo, ou seja, a valorização do espaço doméstico, em contraposição à violência dos espaços urbanos -, o mercado de produtos para o hábitat cresceu. Simultaneamente, em todos os segmentos culturais assistiu-se a uma valorização do que é concebido com base em vertentes da identidade brasileira. Esse caldeirão propiciou uma valorização sem precedentes do design “vintage” tupiniquim, que passou a ser visto como uma expressão privilegiada da cultura material brasileira.
Os móveis modernos brasileiros hoje são encontrados em lojas sofisticadas, com nome e jeito de galerias de arte, não só no Brasil como no exterior. Galerias e casas de leilões do Hemisfério Norte – tais como Sotheby’s, Philips de Pury e Artcurial – passaram a trabalhar com produtos “made in Brazil”, que logo alcançaram enorme prestígio e reconhecimento. Os preços acompanham essa evolução: em 2004, uma cadeira Três Pés, de Joaquim Tenreiro, foi vendida em Nova York por US$ 54 mil. Em 2006, a mesma peça alcançou a cotação de US$ 250 mil, segundo reportagem da revista americana “Art+Auction”. Num mercado aquecido, crescem também as denúncias de que há gente fabricando hoje móveis “históricos”. Nesse contexto, os compradores exigem uma verdadeira folha corrida de cada peça, com sua procedência bem descrita e comprovada.
É importante distinguir o “vintage” da sua cópia e também da sua reedição. Trata-se, nesse caso, de produzir atualmente peças projetadas em outras décadas, sob licença dos respectivos criadores ou de seus descendentes, e com todos os cuidados de execução, em respeito estrito ao projeto. Sergio Rodrigues, Zanine Caldas e Jorge Zalszupin são alguns designers que voltaram a ser produzidos recentemente. Desde que feito às claras, não há nada a obstar nesse procedimento, pois o design implica a possibilidade de produção em série – ao contrário da arte, que costumeiramente é calcada na noção de peça única, de original.
Interessante que a divulgação da história do móvel moderno brasileiro parta da Fundação Getúlio Vargas, cuja missão é “pensar as questões nacionais”. “O registro de criações que formam o patrimônio cultural brasileiro é uma preocupação inerente à FGV”, afirma Cesar Cunha Campos, diretor da FGV Projetos. Já o crítico de arte Paulo Herkenhoff, responsável pela direção editorial da publicação, aponta: “A iniciativa de publicar “Móvel Moderno Brasileiro” consagra uma produção cuja excelência e singularidade parece eclodir em coincidência com a própria trajetória da FGV”.
Essa excelência resulta em móveis com uma qualidade técnica e estética que transcende o tempo. Eles ultrapassam o umbral do moderno para atingir a condição de clássicos.
Adélia Borges é jornalista e professora de história do design
Fonte: Valor Econômico/Cultura e Estilo