Quando disseram ao compositor italiano Nino Rota, autor das trilhas de Federico Fellini, que depois de “Ensaio de Orquestra” nenhum outro ensaio de orquestra no mundo poderia estupefazer, ele retrucou: “Não creio. A ficção é sempre menos brutal e menos traumática do que a realidade”. Pois a vida imitou e potencializou a arte há coisa de um ano, quando a Orquestra Sinfônica Brasileira (OSB) e seu titular, o maestro Roberto Minczuk, protagonizaram uma versão extrema desse que é um filme sempre lembrado de forma redutiva como metáfora do poder tirano, mas em essência a maior elegia já consagrada à música e seus protagonistas (incluindo o regente) na história do cinema (Fellini o dedicou postumamente à música e à memória de seu dileto Nino, morto antes do lançamento do filme, em 1979).
Com Minczuk, o que veio a público foi a primeira parte da parábola felliniana, levada ao paroxismo na vida real, com a imagem amplamente difundida pela rede do momento em que o maestro foi abandonado pela orquestra ao início de um concerto lotado no Teatro Municipal do Rio. Para a dramaturgia, uma cena só comparável ao clímax de uma tragédia grega ou shakespeariana. Os meandros e o que teria vindo depois, tão bem mostrado por Fellini, passada a fase de destruição e “ódio em comum, como uma família destruída”, quando sem o regente a música se prova um definitivo caos, nunca se soube. Aquilo que o próprio Minczuk se recusa a falar, o filme sugere numa comoção última: “As notas nos salvam. A música nos salva”. Não é bem um final feliz. Sequer um final. “O ensaio deve continuar”, dita o maestro. E os músicos, agarrados aos seus instrumentos, por eles amorosamente antropomorfizados, o seguem.
No bojo da rebelião coletiva da OSB esteve a autoridade representada pelo maestro, desde que impôs, por medida da instituição, uma revisão radical do quadro de instrumentistas. Com demissões parte a parte, a formação orquestral foi reformulada, assim como o posto do maestro, que desde julho deixou de ser diretor-artístico da OSB (gestão agora compartilhada pelo produtor Fernando Bicudo e o compositor Pablo Castellar) para se concentrar na função de regente titular. Músicos desligados foram reintegrados a uma nova formação orquestral de câmara: a OSB Ópera & Repertório, com 36 instrumentistas, que atua com regentes convidados. Na grande OSB, a audição internacional gerou cerca de 20 contratações, incluindo brasileiros.
Com a orquestra reestruturada, Minczuk volta a São Paulo no domingo para abrir, na Sala São Paulo, a temporada da série Safira, com o mesmo repertório “ecumênico” que será feito no Rio (Espaço Tom Jobim) um dia antes: o “Concerto para Cello”, de Korngold, e “Schelomo – Rapsódia Hebraica”, de Ernest Bloch (ambas com o solista Jan Vogler); “Ecce Homo”, peça contemporânea de conotação cristã de Jeffrey Ryan; e um laico Shostakovich pelo qual o maestro está obcecado, a 10ª Sinfonia.
Paulistano dividido entre o Rio e o Canadá (é titular e diretor artístico da Filarmônica de Calgary), completou 45 anos na segunda-feira com quase 700 mensagens de congratulações no Facebook, em sua maioria de músicos, mas também de jornalistas e críticos. Intérprete que conhece a competição desde muito jovem – primeiro trompista do Teatro Municipal de São Paulo aos 13 anos; Juilliard School aos 14; Carnegie Hall, Filarmônica de NY e primeiro disco antes dos 18; primeira trompa da Gewandhaus de Leipzig na casa dos 20 -, não vê a troca da carreira de virtuose pela de regente como renúncia, mas “uma transição natural”. “Aos 11 anos fui incumbido pelo meu pai a ser maestro.” Mas só subiu ao pódio 15 anos atrás. “Antes queria provar o meu máximo como instrumentista.”
Valor: É sabido que as trompas constituem a família mais problemática da orquestra: numa passagem, tudo pode acontecer.
Roberto Minczuk: É verdade. E tem uma razão técnica para isso. Os tubos da trompa são muito finos. As notas e os sons harmônicos são muito próximos. A mínima pressão de ar a mais ou a menos faz soar uma nota diferente da pretendida. Não é à toa que no “Guinness” a trompa e o oboé constam como os instrumentos mais difíceis.
Valor: De que forma ser trompista favoreceu sua formação de maestro?
Minczuk: Um trompista tem de saber fazer todas as transposições harmônicas, ler todas as claves. Como é um instrumento que antigamente não tinha chaves, o músico tinha de trocar de trompas conforme a tonalidade. No século XIX foram desenvolvidas as chaves num único instrumento, mas as partes de orquestra ainda vêm com a indicação original do compositor. O músico tem que fazer a transposição imediata do que lê. Com o maestro é o mesmo. Além disso, a trompa não toca 95% da obra, o que te permite espaço e tempo para contemplar o que acontece à sua volta. É bem estratégico.
Valor: O que define uma personalidade sinfônica?
Minczuk: A arte da regência requer saber desenvolver e obter um som próprio. Tem a ver com o gesto, com o olhar, a expressão facial. Sobretudo com a respiração. A orquestra vai respirar com o maestro. Sem perceber. É como uma parceria entre dançarinos, em que um deles conduz. É uma grande responsabilidade nas mãos. Literalmente.
Valor: É possível reger Dmitri Shostakovich sem um peso de chumbo nas costas?
Minczuk: Shostakovich é um compositor que eu amo desde criança [sorri]. Somos de uma família eslava. Ouvíamos de criança, eu e meu irmão, as gravações da Filarmônica de Leningrado. Estão impregnadas em mim. A 10ª Sinfonia é tão pesada – e tão ágil – quanto os tanques e os caças do exército soviético. Ela está relacionada à era da União Soviética, com toda a sua beleza, rigor, genialidade, mas também com todo sentimento que esse regime produziu na sociedade – de rancor, frustração, anseio de liberdade e busca de um ideal. O segundo movimento dessa música são os quatro minutos mais intensos de toda a literatura sinfônica. Termino esses quatro minutos simplesmente exausto.
Valor: Essa sinfonia pode soar bem com cerca de 80 músicos, quadro atual da OSB?
Minczuk: Não é uma questão de volume, é questão de projeção. Tem a ver com ataque, uniformidade, articulação, o tipo de vibrato, a sustentação sonora. Com dicção, com o que se quer enfatizar. Mais do que simplesmente tocar com grande intensidade. Tem muita orquestra que grita. Mas a verdadeira força do fortíssimo está na projeção, no caráter. E o músico às vezes se esquece de que a música depende de cada um deles. Que um mínimo detalhe vai fazer uma diferença enorme no resultado final da peça. Isso é o que se tem que trabalhar.
Regência de Roberto Minczuk e Jan Vogler, no violoncelo. No Rio (Espaço Tom Jobim), sábado, às 16 h. Em São Paulo (Sala São Paulo), domingo, às 17 h
Fonte: Valor Econômico/Cultura