Sim, Tolstói também tem uma obra ‘menor’

Por Noemi Jaffe | De São Paulo






Apic/Getty Images / Apic/Getty ImagesTolstói: acerto de contas com o mundo


Embora Liev Tolstói fosse o primeiro a rejeitar a mitomania dos grandes nomes, aqueles que se teme até pronunciar, não há como negar que seu nome se tornou um mito, uma espécie de tabu. Como pronunciar o nome de Tolstói em vão? Seria quase uma iconoclastia. Quem diz “Tolstói” subentende genialidade. Como falar, portanto, de uma obra do autor que pode ser considerada “menor”? É o caso do livro “Minha Religião”. Talvez um bom caminho para essa encruzilhada crítica seja reconhecer que não se trata exatamente de literatura, mas de uma profissão de fé, um ensaio filosófico-teológico, uma declaração de credo, um acerto de contas com a própria biografia e com o mundo.


“Minha Religião” foi escrito em 1887, cerca de 10 anos após “Anna Karienina” e 20 após “Guerra e Paz”, livros que, depois da conversão total do autor ao anarcocristianismo, foram rejeitados por ele mesmo como literatura feita e consumida pelas elites. Tolstói, que chegou a se corresponder com Mahatma Gandhi e a influenciá-lo em sua revolução pacifista, começou, a partir da década de 1880, a dedicar seu tempo e engenho à causa de uma “rebeldia da não resistência”, que lembra o “homem absurdo”, de Marcel Camus. É esse o caso em outros de seus livros, como “O Reino de Deus Está em Vós”, de 1894, “Confissão” (1882) e “Não Posso Me Calar”, também da década de 1890.


É como se o autor abrisse mão do romance como uma forma narrativa aristocrática, ou no mínimo burguesa, em função de sua necessidade de oferecer conforto ao leitor e tivesse entregado literalmente sua alma à ideia schopenhaueriana do autoabandono, da nadificação do eu.


Em “Minha Religião”, Tolstói expõe repetitiva e exaustivamente suas descobertas realmente reveladoras sobre as palavras de Jesus e desvenda “erros” de tradução, má-fé por parte de comentadores e intérpretes dos “Evangelhos” e uma compreensão totalmente transgressora da fé cristã.



  



Ao detectar nas palavras “Não resistirás ao mal” o cerne do cristianismo, mais do que em “ofereça a outra face”, Tolstói ataca principalmente a instituição católica, a Igreja, mas também o Estado, o direito, a propriedade privada e a família. Afinal, não resistir é muito mais difícil e desafiador do que ofertar a outra face.


Se o mal sobrevém, seja por quais meios e lados for, o homem deve ceder, entregar-se. Sob nenhuma circunstância se pode praticar a ideia do “olho por olho, dente por dente”, nem em legítima defesa, nem para supostamente defender a fé ou a “verdade”. E assim Tolstói também desmonta as justificativas católicas para a vingança, a excomunhão, a perseguição e a segregação de qualquer tipo. Localiza em que momento algumas alterações devem ter sido feitas, nas traduções, para que fosse sancionada alguma conveniência para os poderosos, prega a fidelidade absoluta, a castidade e condena toda forma de juramento. Chama a justiça de disfarce da ideia mais primitiva de “vingança”, nisso lembrando muito o Oswald de Andrade do “Manifesto Antropófago”.


Mas, com tudo isso, e talvez por isso, não se pode dizer que “Minha Religião” seja um bom livro só porque é de Tolstói. Deve-se reconhecer que mesmo nomes supostamente intocáveis podem se repetir tediosa e excessivamente, principalmente quando não estão interessados em literatura, mas em doutrina. Por mais que se admirem suas palavras, e esse é o caso, não há escapatória: não se trata de literatura.


“Minha Religião”


Liev Tolstói Trad.: Dinah de Abreu Azevedo A Girafa, 256 págs., R$ 39,90 / BB+


Fonte: Valor Econômico/Cultura