Em 1933, cerca de 50 meninos órfãos ou abandonados – a maioria negros e com idades entre 9 e 11 anos – foram transferidos de um educandário no Rio para uma fazenda no município de Campina do Monte Alegre (a 230 km de SP). As crianças foram, então, submetidas a trabalhos forçados, sob alegações de propósitos educativos e profissionalizantes. Isolados da comunidade, os garotos foram vigiados por capangas com chicotes, palmatórias, armas de fogo e cães, além de serem submetidos a castigos físicos, cárcere e à fome para debelar transgressões. Tudo isso com o consentimento das autoridades judiciárias, educativas e religiosas da época.
O historiador Sidney Aguilar Filho descobriu a história por acaso quando dava uma aula no terceiro ano do ensino médio sobre a ascensão do nazismo. Na ocasião, uma de suas alunas afirmou que a suástica nazista estava inscrita em tijolos de casarios demolidos na fazenda do pai dela. Em visita à região de Campina do Monte Alegre, Aguilar Filho conheceu a fazenda Cruzeiro do Sul, pertencente na década de 1930 ao empresário Sérgio Rocha Miranda, cuja família era simpatizante do movimento fascista Ação Integralista Brasileira (AIB). A documentação pesquisada mostrou que Miranda era também assumidamente nazista.
Até que ponto estamos dispostos a investigar o passado? Como lidar com as incômodas lembranças de fatos que ocorreram há mais de meio século – quando muitos preferem fingir que nada aconteceu? Essas são algumas questões levantadas por Aguilar Filho em sua tese de doutorado “Educação, Autoritarismo e Eugenia: Exploração do Trabalho e Violência à Infância Desamparada no Brasil (1930-45)”, defendida na Faculdade de Educação da Unicamp.
“O que me chamou a atenção não foi tanto a simbologia nazista nos tijolos da fazenda, mas a ligação entre um empresário da cúpula do integralismo com a história que me relataram da transferência dos meninos, referida como ‘reeducação pelo trabalho”, afirma o historiador. “Que mundo era aquele? Que época era aquela em que parecia normal retirar crianças negras da então capital do país?”
Durante suas pesquisas, Aguilar Filho descobriu que a transferência das crianças do Educandário Romão de Mattos Duarte, pertencente à Irmandade de Misericórdia do Rio de Janeiro, havia sido feita com a concordância da Igreja e autorizada pelo titular do Juizado de Menores do Distrito Federal, José Cândido de Albuquerque Mello Mattos (que concebeu o primeiro Código do Menor do país, de 1927). Segundo o Código, particulares poderiam instituir escolas, desde que tivessem autorização do governo, não buscassem ganhos pecuniários e se sujeitassem à fiscalização.
Os irmãos Miranda figuravam nas décadas de 1930 e 1940 como beneméritos e grandes empresários brasileiros. Fotos e documentos mostram que eles possuíam várias fazendas dedicadas à criação de equinos e bovinos. O negócio era compatível com vários outros empreendimentos pertencentes à família. Um dos irmãos, Renato, presidia uma grande empresa de carvão de Santa Catarina. Segundo documentos obtidos pelo historiador, ele mantinha negócios, tanto antes quanto depois da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), com a família Krupp, dona de poderosa siderúrgica alemã produtora de armas e equipamentos bélicos.
Um dos membros do clã foi Alfried Krupp (1907-1967), ministro da Economia de Guerra de Hitler, condenado pelo Tribunal de Nuremberg pelo uso de trabalho escravo de judeus. Terminada a guerra, Krupp comprou uma das fazendas da família, para onde enviou seu único herdeiro, Arndt von Bohlen und Halbach (1938-1986). Por essa época, a “experiência educativa” já havia sido abandonada e os meninos largados à própria sorte.
Segundo o historiador, alguns garotos sonharam em voltar a pé para o Rio. Outros viraram mendigos e morreram. José Rodrigues, um desses meninos, tornou-se militar, lutou na Itália e “morreu louco”. Aguilar Filho conseguiu encontrar um sobrevivente, Aloysio Silva, hoje beirando os 90 anos. Na época era o “23” – ao entrar na fazenda, os meninos perdiam a identidade e se transformavam em números. A princípio relutante em falar sobre aqueles anos sombrios de sua infância, Silva, bem como familiares de outros ex-prisioneiros, relataram situações de tortura, castigos como ajoelhar em grãos de milho, trabalho exaustivo e poucas atividades realmente educativas.
Aguilar Filho desconhece outros casos semelhantes na história da época envolvendo um número tão grande de crianças, mas a prática de “adotar” meninos e meninas órfãos ou abandonados para trabalhar não era incomum. Os documentos oficiais provam que no Brasil do tão alardeado mito da democracia racial, propostas discriminatórias e amargas foram consideradas parte de um projeto nacional e da cultura de uma elite abertamente defensora de princípios eugenistas e de inspiração nazista.
Essas propostas encontraram eco numa parcela da intelectualidade que via a pobreza e o estado deplorável de saúde da população menos assistida como algo preocupante, mas que poderia ser solucionado com medidas segregacionistas. Importante, segundo essa forma de pensamento, era isolar, transferir ou eliminar indivíduos ou grupos sociais fora das normas, considerados menos úteis ou incapazes. “O que acabei encontrando foi uma legislação abertamente eugenista – e essas crianças como vítimas”, afirma o historiador.
Aguilar Filho cita documentos produzidos nos debates que levaram à Constituição de 1934 para comprovar a existência de uma bancada formada por mais de 20 deputados constituintes que defendiam práticas eugenistas em propostas voltadas às políticas educacionais, migratórias e sanitárias. E lembra que, na época, a eugenia não foi uma prática desenvolvida e aplicada apenas nos regimes autoritários europeus. No Brasil, a busca do aprimoramento da raça adquiriu outros contornos diante do passado escravocrata e das desigualdades sociais que nunca deixaram de existir.
Ele conta que, terminada a guerra e sob o impacto do que havia acontecido nos campos de extermínio na Europa nazista, o caso foi relegado ao esquecimento. A fazenda passou para outros donos e o atual proprietário prevê limpar o terreno das edificações que ainda restam para facilitar o cultivo de cana-de-açúcar. Em Campina do Monte Alegre, o nome da rua principal e da maior escola pública da cidade é uma homenagem a Renato Rocha Miranda, um dos membros da família.
“Hoje, todas as discriminações sofridas pelos ‘meninos do Romão Duarte’, como ficaram conhecidos, são consideradas crimes graves”, afirma o historiador. A eugenia foi desacreditada como ciência e condenada como postura política. Mas o discurso de desqualificar ou mascarar conflitos sociais pela origem continua, especialmente em questões como a criminalidade. Enfrentar essas questões pressupõe o conhecimento do passado, acredita Aguilar Filho. Ele conta que a tese tem proposta para ser transformada em livro e pode dar origem a um documentário. O historiador também prossegue em suas pesquisas. Atualmente, pretende investigar o impacto do projeto político, econômico e social da época da ditadura militar sobre grupos de crianças, isolando casos ocorridos no período.
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